Carta de Berlim:
A notícia varreu a Europa nesta semana, com algum atraso:
no dia 3 de outubro (dia da reunificação alemã, 30 anos
antes) ataques simultâneos a 3 museus de arte em Berlim
danificaram cerca de setenta peças arqueológicas e
artísticas com o uso de um óleo ácido. Todas as instituições
ficavam na chamada “Ilha dos Museus”, relativamente
próxima da famosa Alexanderplatz: o Pergamon, a Alte
Nationalgalerie e o Neues Museum. A polícia e a Stiftung
Prussischer Kulturbesitz, Fundação da Herança Cultural
Prussiana, mantenedora dos museus, ocultaram o fato do
público até esta semana para não prejudicar as primeiras
investigações.
Especulações na mídia alemã vinculam o ataque a grupos egacionistas (em relação às medidas sanitárias preventivas contra a Covid-19), de extrema- direita. Alguns dstes grupos agitam o tema propalando que a expansão do Corona-Vírus se deve ao velho e surrado tema do complô judaico para dominar o mundo, numa clara concorrência com a extrema-direita norte-americana e sua filial brasileira, para quem tudo se trata de um complô chinês. Bom, nos anos 30 se falava num complô comunista-judaico- maçônico para dominar o mundo; quem sabe agora chegaremos à hipótese de um complô sino- russo-judaico-muçulmano-globalista-marxista-cultural, tendo por líderes figuras tão díspare como Xi-Jinping, Vladimir Putin, George Soros, Bashar al-Assad, Noam Chomsky, Nicolás Maduro, Lula e Evo Morales? Ah, eu estava me esquecendo: aqueles grupos da extrema-direita consideram Angela Merkel uma agente comunista; pelo menos um líder dentre eles a acusa de realizar sacrifícios humanos no altar do Pergamon, o antigo templo reconstituído que dá nome ao famoso museu berlinense. A leitora ou o leitor acham que estou louco? Posso afiançar que o louco não sou eu: consultem “Berlin: Vandalism of Museum Artefacts Linked to Conspiracy Theorists” e artigos conexos no The Guardian, por Philip Oltermann, 20/10/2020).
Este evento trouxe-me à baila outros recentes, nesta Berlim de trepidantes transformações.
No último fim de semana fui visitar uma exposição num – museu?, não sei muito bem como chamar – o Berghain, que deve seu nome a situar-se na divisa de dois bairros famosos, Kreuzberg, tradicionalmente um bairro de imigrantes turcos que vem mudando sua frequência, e Friedrichshain, hoje neo-ocupado pela boemia estudantil. Kreuzberg está sendo “invadido” por um público estudantil que vem para Berlim devido à gratuidade do ensino superior público na cidade, e por novos ricos atraídos pelos ainda baixos preços de seus imóveis, o que inclui investidores estrangeiros de vários países europeus.
Berghain foi inaugurado em 2004, como um clube de technomusik, e a partir da iniciativa do casal Boros, Christian e Karen, transformou-se no atual centro de uma exposição com obras de 85 artistas plásticos da cena jovem berlinense, criadas durante o primeiro ciclo da presente pandemia que assola o mundo. Até aqui o fio que liga as duas matérias é o pandêmico, recriado aqui, negado lá. Assinale-se que o casal mora no alto de um antigo “bunker” da Segunda Guerra, cujos andares inferiores foram transformados em ateliê de exposições.
O prédio que abriga o Berghain é uma antiga termo-elétrica – gigantesca – dos tempos da DDR, a ex-Alemanha Oriental anexada, mais do que reunificada, à triunfante Alemanha Ocidental. A exposição mostra obras para mim desiguais, muito atraentes umas, outras nem tanto; mas trata-se de meu gosto pessoal. A exposição vale a pena, e o prédio ainda mais. Evoca ele também o reinado fulgurante da technomusik na Berlim reunificada logo depois da queda do muro, em novembro de 1989. Foram momentos eufóricos de confraternização e locurálias de todos os tipos, confirmando a aura de cidade alternativa que cercara a Berlim Ocidental a partir da década de 60.
Mas quando as coisas começam a virar exposição em estado de museu rememorativo é porque estão deixando a vida para entrar na história, como diz famosa carta brasileira. Penso ser este o caso. Aquele ar alternativo da antiga Berlim Ocidental chegara a penetrar na sua antiga parceira/adversária Oriental. Na Berlim do pós-guerra sobravam prédios abandonados. Logo se tornaram palco de “Ocupações” por parte de movimentos jovens, da contra-cultura que pululava na cidade cercada pelo muro a partir de 1961. Para não ficar atrás, a vetusta e mais conservadora Berlim Oriental passou a tolerar, numa única rua, movimentos semelhantes, da contra-cultura hippie que se espalhava pelo mundo inteiro, também admitindo invasões de prédios.
Quando o muro caiu, a euforia tomou conta de toda a cidade, incluindo aquela rua da cidade Oriental onde a “democracia” já imperava. A euforia aumentou graças à reunificação, a partir do 3 de outubro de 1990. Entretanto, pouco tempo depois a democracia real chegou àquela rua.
Houvera processos de reintegração de posse, e a polícia democrática estava lá para democraticamente remover os ocupantes dos prédios – agora indevida e ilegalmente – ocupados. Foi o começo do fim da festa. Ou pelo menos de uma das festas da cidade.
Pois agora, neste 2020, esta festa acabou de terminar. Poucas semanas atrás mil policiais foram mobilizados para desalojar os ocupantes da última Ocupação na antiga Berlim Ocidental. Houve manifestações contrárias à ação policial e algumas detenções, sem maiores gravidades. Para mim é o símbolo do fim de uma era.
Para completar este quadro de transição, está para ser inaugurado o novo aeroporto de Berlim, um mostrengo a dezenas de quilômetros do centro, já na província de Brandemburgo, que cerca a capital alemã, e que leva o nome de Willy Brandt, em homenagem ao antigo prefeito da cidade e chanceler do país. Digo mostrengo devido à série de escândalos que cercaram sua construção. Ele teve sua inauguração adiada por cerca de dez anos devido a uma sucessão de irregularidades em sua construção, que consumiu cinco ou seis vezes mais zilhões de euros do que os previstos inicialmente. Alguns comentáristas o acusam de já estar ultrapassado; outros dizem que graças à pandemia este anacronismo ficaria agora oculto.
Em todo caso, sua inauguração fechará o aeroporto de Tegel, que, como o de Congonhas em São Paulo, fica no meio da cidade. A transformação será dramática: Tegel, construído na parte ocupada pelas tropas francesas, é (era, logo se dirá) um aeroporto extremamente funcional. De formato octogonal, seu prédio principal garantia um acesso rápido por parte dos usuários aos pontos de embarque. O novo obedece à lógica dos atuais – repito agora a palavra – mostrengos das metrópoles contemporâneas, aeroportos transformados em gigantescos e labirínticos shopping-centers de preços abusivos.
Enfim, tudo isto – espasmos conspiratórios e negacionistas misturados com superstições anti- científicas, mais o museu que evoca a techno-musik eufórica da reunificação, o fim das
Ocupações, a mudança dramática de aeroporto, com o novo sob suspeita de desperdício financeiro e desajuste funcional, me remete à ideia de que a antes alternativa Berlim está se transformando numa metrópole decididamente capitalista e “normal” deste século XXI. Eu poderia citar ainda a especulação imobiliária, os preços montantes, os engarrafamentos, as obras que perturbam tanto o tráfego quanto a respeitando devido à poeira que levantam, o fato de que a cidade, que era definida como “pobre, mas sexy”, pelo seu antigo prefeito Klaus Wowereit, está deixando de ser pobre e também deixando de ser sexy, assolada, como tantas outras cidades, por esta nova “normalidade” que ameaça constantemente, como a pandemia que nela cresce de modo assustador, nos acachapar a vida.
*Escritor, professor aposentado de literatura brasileira na USP e autor,
entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).