Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às
instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem
do país e das gerações futuras e quem está preocupado
apenas com interesses pessoais?
Gal Eduardo Villa Boas, in Animus, Consultor Jurídico
11/11/2018, www.conjur.com.brdeclaração 2
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A soma dos fatos e dos números não deixa lugar a dúvidas que a resposta do
governo brasileiro à pandemia do coronavírus foi absolutamente desastrosa, quando não
criminosa; e seu plano de vacinação massiva da população é um caos, quando não um
engodo. Já são 7,5 milhões de brasileiros infectados e cerca de 200 mil morreram até
agora, e as autoridades seguem batendo cabeça diariamente, como se fossem um bando
de palhaços irresponsáveis e debochados. E apesar de tudo isso, o general Eduardo
Pazuello segue ministro da Saúde, sem entender de pandemias, nem de planejamento,
nem de logística. Simplesmente porque ele é apenas mais uma nulidade de um governo
que não existe, que não tem nenhum objetivo nem estratégia, e que não é capaz de
formular políticas públicas que tenham início, meio e fim.
Por isso, o fracasso frente à pandemia se repete monotonamente em todos os
planos e áreas de ação de um governo que se contenta em assistir, com ar de galhofa, à
desintegração física e moral da sociedade brasileira, enquanto estimula a divisão, o ódio e
a violência entre os próprios cidadãos. É o mesmo descaso e omissão com a vida que
este governo vem mantendo frente ao avanço da devastação ecológica da Floresta
Amazônica, da Região do Cerrado e do Pantanal, com números que vêm provocando um
levante mundial contra o Brasil.
Basta olhar os números para dimensionar o tamanho do desastre, começando pela
economia, que já estava estagnada desde antes da pandemia. A previsão do PIB
brasileiro para ao ano de 2020 é de uma queda de cerca de 5%, embora o PIB brasileiro
1 Em homenagem ao meu grande amigo Luiz Alberto Gomes de Souza, que faleceu no dia 30 de dezembro de 2020, e
que foi um grande guerreiro na luta contra a ditadura militar e contra desigualdade a a injustiça da sociedade
brasileira.
2 Declaração do Gal Eduardo Villas Boas, feita no dia 3 de abril de 2018, véspera do julgamento do pedido
de habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi lida na época como
uma pressão explícita do ex-Comandante em Chefe das FFAA sobre o STF, a favor da condenação do ex-
presidente e pela sua exclusão da disputa presidencial de 2018.
já viesse caindo em 2018 e em 2019, quando cresceu apenas 1,1%. Mas o que é mais
importante, a taxa de investimento da economia, que foi de 20,9% em 2013, caiu para
15,4% em 2019 e deve cair muito mais no ano de 2020, segundo todas previsões das
principais agências financeiras nacionais e internacionais. Para piorar o quadro de
desmonte, a saída de capitais do país, que havia sido de R$ 44,9 bilhões em 2019 – a
maior desde 2006 –, quase dobrou em 2020, passando para R$ 87,5 bilhões de reais e
sinalizando uma desconfiança e aversão crescente dos investidores internacionais com
relação ao governo do senhor Bolsonaro e seu ministro Paulo Guedes, apesar de suas
festejadas reformas trabalhista e previdenciária.
Por isso mesmo, em 2019 o Brasil foi simplesmente excluído do Índice Global de
Confiança para Investimento Estrangeiro publicado pela A. T. Kearney, consultoria norte-
americana que traz o nome dos 25 países mais atraentes do mundo para os investidores
estrangeiros, o mesmo índice segundo o qual o Brasil ocupava a 3ª posição nos anos
2012/2013. Paralelamente, a participação da indústria no PIB nacional, que era de 17,8%
em 2004, caiu para 11% em 2019, e deve cair ainda mais em 2020/2021; e o
desemprego, que era de 4,7% em 2014, subiu para 14,3% em 2020, e deve seguir
subindo no próximo ano.
A indústria brasileira está enfrentando escassez de matéria-prima e, segundo o
DIEESE, o país já acumula, em 2020, uma taxa de inflação de 12,14% no preço dos
alimentos que afetam mais diretamente o consumo das famílias mais pobres. De outro
ângulo, os especialistas estão prevendo um apagão elétrico para o ano de 2021, como já
aconteceu no estado do Amapá. E agora, no final de 2020, o Brasil está com déficit
energético e importa energia do Uruguai e da Argentina, o que explica a Bandeira
Vermelha 2 que começará a pesar no bolso dos consumidores em 2021. Ainda com
relação ao estado da infraestrutura do país, a Confederação Nacional dos Transportes
vem advertindo que o estado geral das rodovias brasileiras piorou em 2019, e 59% da
malha rodoviária pavimentada apresentam hoje sérios problemas de manutenção e
circulação. Por fim, como consequência inevitável dessa destruição física, a economia
brasileira sofreu uma das maiores reversões de sua história moderna, deixando de ser a
6ª ou 7ª maior do mundo, na década de 2010, para passar ser a 12ª em 2020, devendo
cair ainda mais, para o 13º lugar, em 2021, segundo previsão do Centre for Economics
and Business Research publicada pelo jornal The Straits Times, de Singapura.
As consequências sociais desta destruição econômica eram previsíveis e
inevitáveis: mesmo antes da pandemia, em 2019, 170 mil brasileiros voltaram para o
estado de pobreza extrema, onde já viviam aproximadamente 13,8 milhões, número que
deverá crescer exponencialmente depois que terminar o “auxílio emergencial”,
aumentando ainda mais a taxa de desemprego em 2021. A nova realidade criada pelo
fanatismo ultraliberal do senhor Guedes já apareceu imediatamente retratada no novo
ranking mundial das Nações Unidas, o IDH, que mede a “qualidade de vida” das
populações, no qual o Brasil caiu cinco posições, passando de 79º para 84º lugar entre
2018 e 2020. No mesmo período, o Brasil passou a ser o país com a segunda maior
concentração de renda do mundo, atrás apenas do Qatar, e o oitavo mais desigual do
mundo, atrás apenas de sete países africanos.
Por fim, é impossível completar este balanço dos escombros deste governo sem
falar da destruição da imagem internacional do Brasil, conduzida de forma explícita e
aleivosa pelo palerma bíblico e delirante que ocupa a chancelaria. Aquele mesmo que
comandou a tragicômica “invasão humanitária” da Venezuela em 2019, à frente do seu
fracassado Grupo de Lima; o mesmo que fracassou na sua tentativa de imitar os Estados
Unidos e promover uma mudança de governo e de regime na Bolívia, através de um
golpe de Estado; o mesmo que já comprou briga com pelo menos 11 países da
comunidade internacional que eram antigos parceiros do Brasil; o mesmo que se lançou
numa guerra beatífica contra a China, o maior parceiro econômico internacional do Brasil;
o mesmo que conseguiu derrotar, em poucas semanas, duas candidaturas brasileiras em
organismos internacionais; o mesmo que conseguiu que o Brasil fosse excluído da
Conferência Internacional sobre o Clima realizada pela ONU em dezembro de 2020; e por
fim, o mesmo que celebrou com seus subordinados do Itamaraty, o fato de o Brasil ter
sido transformado, na sua gestão, num “pária internacional”. Algo verdadeiramente sem
precedentes e que dispensa qualquer tipo de comentário adicional vindo da parte de um
rapagão deslumbrado que foi nomeado praticamente por John Bolton e Mike Pompeo, a
dupla de “falcões” que comandou durante alguns meses, em conjunto, a política externa
do governo de Donald Trump.
Ao final do segundo ano deste governo, compreende-se imediatamente por que a
maioria dos que participaram do golpe de Estado de 2016, e que depois apoiaram o
governo do senhor Bolsonaro, estejam abandonando o barco e passando para a
oposição. Os jovens “cruzados curitibanos”, tendo cumprido a missão que lhes foi
encomendada e depois dos seus cinco minutos de celebridade, estão fugindo ou voltando
para o seu anonimato, enquanto afundam na lama da sua própria corrupção. A grande
imprensa conservadora mudou e hoje dedica-se a atacar o governo diariamente,
enquanto os partidos tradicionais de centro e centro-direita, que estiveram juntos com o
senhor Bolsonaro desde o golpe de 2016, agora se afastam e tentam construir um bloco
parlamentar de oposição. E até mesmo o “mercado” parece cada vez mais insatisfeito
com o seu ministro da Economia, que já foi comemorado em outros tempos como a Joana
d’Arc da revolução ultraliberal no Brasil. Assim, neste momento o governo só conta com o
apoio político do submundo fisiológico do Congresso Nacional, que a imprensa chama
delicadamente de “centrão”, o mesmo mundo em que o senhor Bolsonaro vegetou
durante 28 anos no mais absoluto anonimato, em nove partidos diferentes. Esse grupo
parlamentar sempre esteve e estará pendurado em qualquer governo que lhe ofereça
vantagens, mas nunca teve nem terá capacidade autônoma de constituir ou sustentar um
governo por sua própria conta. Por isso, depois de dois anos dessa desgraceira, existe
uma pergunta que não quer calar: como se sustenta, afinal, este governo mambembe,
apesar da destruição que vai deixando pelo caminho?
Já foi mais difícil, mas hoje a resposta está absolutamente clara, porque na medida
em que os demais sócios relevantes foram se afastando, o que sobrou de fato foi um
simulacro de governo militar, absolutamente mambembe. Basta olhar para os números,
uma vez que todos sabem que o próprio presidente e seu vice são militares, um capitão e
o outro general da reserva. Mas além deles, 11 dos atuais 23 ministros do governo
também são militares, e o próprio ministro da Saúde é uma general da ativa, todos à
frente de um verdadeiro exército composto por 6.157 oficiais da ativa e da reserva que
ocupam postos-chave em vários níveis do governo. Segundo dados extraoficiais, são
4.450 do Exército, 3.920 da Aeronáutica e 76 da Marinha, número que talvez seja até
maior do que o dos militantes oficiais do PSDB e do PT que ocuparam postos
governamentais durante seus governos em décadas passadas. Por isso, depois de dois
anos fica difícil tapar o céu com a peneira e tentar separar as FFAA do senhor Bolsonaro,
não apenas pela extensão e pelo grau de envolvimento pessoal dos militares instalados
dentro do Palácio da Alvorada, mas também pelo nível e intensidade dos contatos e
reuniões regulares mantidas durante estes dois anos entre generais e oficiais da reserva
e da ativa, dentro e fora do governo, sobretudo entre os altos escalões das duas
instituições. Depois de tudo isso, seria como querer separar dois ovos de uma mesma
gemada.
Isto posto, o fracasso deste governo deverá atingir pesadamente o prestígio e a
credibilidade das FFAA brasileiras, colocando uma pá de cal sobre o mito da
superioridade técnica e moral dos militares com relação ao comum dos mortais. Agora
está ficando absolutamente claro, e de uma vez por todas, que os militares não foram
treinados para governar. Uma coisa são seus manuais de geopolítica e exercícios de
ginástica e de guerra, outra coisa inteiramente diferente são os conhecimentos e a
experiência acumulada indispensável para a formulação de qualquer tipo de política
pública, ainda mais para se propor a governar um país com o tamanho e a complexidade
do Brasil. Além disso, também ficou claro na história recente que a presunção da
superioridade moral dos militares é apenas um mito, porque os militares são tão humanos
e corruptíveis quanto todos os demais homo sapiens. Basta lembrar o episódio recente da
solicitação irregular, por parte de centenas de militares, da “ajuda emergencial” destinada
às pessoas mais pobres, na primeira fase da pandemia no Brasil. Estima-se que foram
mais de 50 mil casos de irregularidades denunciadas pelo Tribunal de Contas da União e
que tiveram que devolver o auxílio aos cofres públicos. Mas mesmo depois da devolução
dos valores adquiridos irregularmente, o que esse episódio ensina é que não existe
nenhuma razão para acreditar que os soldados estejam acima de qualquer suspeita e que
sejam inteiramente infensos às “tentações mundanas”.
Aliás, não existe caso mais exemplar do fracasso desta crença na superioridade do
juízo militar do que o que se passou com o próprio ex-Comandante em Chefe das FFAA
brasileiras, que autoconvencido de sua “genialidade estratégica” e de sua grande
“sabedoria moral” decidiu avalizar em nome das FFA, e tutelar pessoalmente a operação
que levou à presidência do país um psicopata agressivo, tosco e desprezível, cercado de
por um bando de patifes sem nenhum princípio moral, e de verdadeiros bufões
ideológicos, que em conjunto fazem de conta que governam Brasil, há dois anos. Que
sirva de exemplo para que não se repitam estas pessoas que se consideram superiores e
iluminadas, com direito a decidir em nome da sociedade, usem farda, toga, batina ou
pijama.
No século XX, os militares deram uma contribuição importante para a
industrialização da economia brasileira, mas também contribuíram de forma decisiva para
a construção de uma sociedade extremamente desigual, violenta e autoritária. E
castraram toda uma geração progressista que poderia ter contribuído para o avanço do
sistema democrático instalado em 1946. Assim mesmo, agora no século XXI, a nova
geração de militare, bastante mais medíocre, está se dedicando a destruir o que de
melhor haviam feito no século passado.
Por tudo e com tudo, parece que está chegando a hora de a sociedade brasileira
se desfazer desses “mitos salvadores” e devolver seus militares a seus quartéis e suas
funções constitucionais. Assumir de uma vez por todas, com coragem e com suas
próprias mãos, a responsabilidade de construir um novo país que tenha a sua cara, e que
seja feito à sua imagem e semelhança, com seus grandes defeitos, mas também com
suas grandes virtudes. Que seja um país altivo e soberano, mais justo e menos violento,
que respeite as diferenças e todas as crenças, e que volte a ser mais humano, mais
fraterno e mais divertido. E que o Brasil volte a ser aceito, admirado e respeitado pelo
resto do mundo. Estes pelo menos são meus votos para o ano de 2021.
31 de dezembro de 2020